Devolva-me, por Ana Marques


Eu a via seguir por estradas insones. Correr de um lado para o outro, sem que nenhuma de suas palavras fizesse sentido para mim. Ela segurava flores imaginárias e soltava as borboletas que estavam presas no miolo amarelo.

Acenava alegremente a noite que descia, chorava ensandecida para o dia que a iluminava. Ela vivia de trevas e odiava a luz. Suas refeições eram escuras e seus soluços infinitos.

Ela me assustava.


Sua voz sorria no escuro e eu ria junto. Nunca sabia se devia correr ou me esconder. Seus braços me envolviam e apertavam: o mundo lá fora era um lugar perigoso para nós. As vezes, aqueles mesmos braços me torciam e sufocavam: o mundo lá dentro tornava-se perigoso para mim.


Ela recitava poemas sem sentido e contava histórias incríveis. Pintava borrões e eu podia ver a beleza nas suas tintas no fundo branco. Cantava alto quando estava triste, cantava alto quando estava feliz. Eu não conseguia alcançar a sua voz ou o seu espírito. E assim sempre me sentia sozinha.


As vozes que ela repetia e dizia que viviam em sua cabeça me assustavam.


Mas sim, eu a amava! Não conseguia entender as alterações de humor, nem os constantes rompantes e delírios que podiam me tirar do chão ou me atirar da escadaria.


Eu não entendia o portão fechado, as cortinas lacradas, as portas que nos faziam prisioneiras. Eu chorava pelas correntes que me prendiam à cama quando ela sumia por horas e mais horas deixando-me ali: olhos no teto, corpo imóvel, a mente tentando subornar o tempo com pensamentos esvoaçantes. Mas o tempo nunca passava rápido o suficiente, ele estava contra mim.


Quando ela voltava, seus sorrisos me encantavam novamente e eu me via presa da sua doçura. As desculpas eram suficientes e o seu colo era o abrigo mais acolhedor do mundo, no qual eu podia me esconder. Brincávamos de banheira e eu a molhava toda enquanto fingíamos estar numa piscina. Eu me jogava e rolava no chão ouvindo-a rir e rolar atrás de mim.


Era felicidade alternada com terrores inesperados.


Ela foi tirada de mim em uma manhã de abril, no dia que eles chegaram. Destrancaram a porta e abriram as cortinas. Ela escondeu-se em todas as sombras que encontrou, mas eles a pegaram. Seguraram as suas mãos e a prenderam. Eu gritava, chorava e esperneava, mas não fazia diferença alguma. O dia estava claro, ainda lembro o brilho de um sol quase desconhecido que me feria os olhos e soluços que não sabiam cessar. Eu me debatia, não queria ninguém, não aceitava que me tocassem.


No entanto, a juventude queria viver e me venceu. Me deixei ser cuidada por estranhos, pelas figuras hipoalergênicas de médicos e enfermeiras como o senhor, que desejam curar a minha vida sem compreender quem eu sou. E do que sou feita.


Por mais que tenham me tirado dela, não a tiraram de mim. Sua figura está presente nos sonhos e pesadelos que eu tenho. Ainda quero o seu colo e o seu abraço, e me odeio por isso. Hoje consigo entender mais dela e mais de mim. Muito mais do que o senhor, que pretende ser o dono dos meus pensamentos e das minhas respostas.


Mas nada disso interessa agora. O senhor que me escuta, quer o meu cérebro? As minhas lembranças, as minhas perguntas? Tome tudo. Pode usar cada palavra, espezinhar e modificar como quiser. Anote, escreva um livro, faça uma tese. Eu não ligo.


Mas em troca, devolve a minha vida. Eu preciso sonhar, preciso sentir, preciso ter algum controle, alguma emoção, algum propósito, algum sentido. Preciso olhar para trás e olhar para a frente sem que uma nuvem me deixe tonta, sem comprimidos que me roubem quem eu sou, quem eu fui.


Por favor, tire esses remédios e me devolva a mim.


imagem: freepik



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