Não te falo mais nada, por Ana Marques


Não te falo mais nada.

Meu corpo não tem espaço para tanta pancada e meu fígado já falha da raiva que eu guardo. Não tenho voz para te acusar, não tenho sangue para me defender. Vivo dos desvios – às vezes rápidos e às vezes lentos – dos tapas que voam para todo lugar. Meu corpo sacode no ar, não é de alegria ou gozo. Sacode da surra que me espera ao final de um dia ruim.

Que vida é esta?

A igreja não responde. Resigno a mim mesma em orações que não faço. Não vou mais à igreja, não acredito em mais nada e dia a dia a vida segue sem cessar.

Não cessam os socos, que às vezes chegam aos filhos. Filhos estes que também não param de chegar.

Chega!

Não te falo mais nada.
A odisseia remonta o espetáculo. Retoma o palco e lá vou eu. É mais longa a sessão de porrada e quase por nada eu durmo no chão. O sangue se espalha, eu limpo e cansada, vou passando o pano no chão.

A boca não abre de tão inchada, os dentes já moles reclamam dentista, comida, dignidade e um pouco de paz. Não tenho mesmo para onde ir, os dentes mesmo que caiam não sujam o chão e me deixo ficar quieta e parada esperando o próximo dia: de paz ou de cão.

E o cão late de fome, crianças desnutridas choram no meu ouvido, o estômago dói de tão vazio. A fome chega de todos os lados, mas a comida faz tempo parou de chegar.

Chega!

Não te falo mais nada.
Meu corpo vazio é surrado ao extremo. O coito que aguento não é interrompido e em várias noites tenho que suportar. Teu corpo invade, estupra, machuca. Teu beijo nojento submete minha vida, a mão suja explora e sacia uma sede de domínio que não consigo entender. Entrego a honra que não existe. Que vantagem teria em dizer “não”? Tanta pancada pra quê? Toma essa carne, satisfazer a tua fome é a minha função.

Mais uma noite e mais um dia, você me toma em qualquer lugar. Criança que vê, silencia e aprende: cala este grito, segura este choro e abre as pernas para o braço não descer. Para teu prazer meu corpo moído não chega, mas prazer para mim há muito parou de chegar.

Chega!

Não te falo mais nada.
Minha arma dispara.
Seis tiros em teu peito que eu não quero mais te ouvir.
Crianças na rua, orfanato, abrigo. Casa dos avós?
Não te falo mais nada e nem vou te ouvir.

Você já era.

Para mim foi tanta porrada, para ti foram seis tiros no peito. Eles calaram os teus gritos, as tuas ofensas, a dor, a fome e a humilhação.
Se mais dor chega, junto com o teu último suspiro, de qualquer jeito esta dor nunca parou de chegar.

Então chega o fim.

***

P.S.: A história é baseada num fato. Na lembrança que eu guardo de uma vizinha com vida semelhante e que ao final foram quatro tiros no peito do marido e a fuga com três filhos debaixo do braço. Dei aula para um dos meninos dela e a conheci antes do acontecimento narrado. Nunca tinha visto tanta violência guardada numa criança e poucas vezes tinha visto uma mulher tão infeliz.

Que a violência não seja suportada.
Que ela seja denunciada.

***

imagem: Freepik

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